Re-cordis

Nós, seres humanos, vivemos em ciclos. Dias, horas, meses, anos… Encerramentos e recomeços. Os ciclos nos dão uma certa segurança. A falsa certeza do amanhã que vai chegar quando fechamos os olhos na noite, a ilusão de que um ano novo vai ser diferente só porque o relógio assinalou que a meia-noite do dia 31 de dezembro passou e já é outro ciclo que se inicia.

Mas, de fato, os ciclos nos impulsionam a romper com antigos hábitos que já não cabem, a vibrar para que coisas melhores façam parte do nosso dia a dia, a ansiar a luminosidade e a plenitude possíveis. Ser ou não ser… aí é outra história. E são muitas.

Fato é que os ciclos são fortes e tornam as vivências mais profundas na proximidade de seus términos e reinícios (todos sabem do tal “inferno astral”, que antecede o fechamento do ciclo anual de vida – já ouviram falar ou sentiram o que ele significa). Fins de ciclos são sempre uma grande oportunidade de rever, refletir, reordenar,  repensar, se perceber e respirar os próximos passos.

Fechamentos de ciclos também trazem as lembranças, o recordar. Eduardo Galeano diz bonito assim: “Recordar: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração”.

Estou em fase de re-cordis.

Hoje faz um ano que Magro fez o último show. Foi em Natal (RN). Uma viagem difícil, longa, cansativa. Aquiles foi fiel escudeiro nesse trajeto, como o foi em tantos outros. Todos foram os acolhedores amigos de sempre, atentos e cuidadosos, nesses dias de Natal. Durante o show, ninguém diria que Magro estava sentindo dor ou que estava com algum incômodo. Muitas vezes, nem mesmo no camarim ele deixava transparecer o que passava. Lembro do Miltinho falando de como se impressionava com a força que Magro tinha quando subia no palco, por mais debilitado que estivesse. A música era mesmo a sua cachaça.

IMG_0866 IMG_0910Três dias depois desse show, Magro entrou no hospital pra nunca mais sair. E só sabe da força, da luta que esse homem travou, quem esteve com ele. Passou o tempo de internação trabalhando, sempre que possível, no livro e nos últimos programas de rádio. Fazia planos, pensava em incluir esta ou aquela música no próximo show, se preocupava com a agenda que não conseguia cumprir. Posso dizer que ele teve o ímpeto de seguir na luta até o finalzinho, com a esperança constante de sair daquele quarto, de voltar pra casa e seguir caminhando. Não foi assim. Seguiu caminhando, é certo, mas está dando passos em outro lugar ao qual não temos acesso.

E nós ficamos por aqui, lidando com essa presença constante da ausência, passando por esses re-cordis mais densos e por outros re-cordis tão bons e luminosos que fazem brotar um sorriso não  pensado no rosto, que re-aquecem o coração.

Certa vez Magro me mandou um lindo poema. Lembrei dele agora e o deixo aqui, encerrando esse post.

DA SAUDADE BOA

Vinha andando pela rua / Quando uma lembrança tua / Fez cócegas na saudade

Minha boca se abriu num riso / De quem perdeu o juízo / E encontrou a verdade

E percebi, pouco a pouco / Que me chamavam de louco / Na minha felicidade

E a risada que eu ria / Era o sorriso que eu via / No sonho realidade

A tua boca sorrindo / Na minha boca unindo / O nunca à eternidade

MTW

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9 respostas para Re-cordis

  1. jeanyvescordier disse:

    SAUDADE ! É ISSO MESMO. Você, Monica, esta dando mais uma maravilhosa ilustração de
    um sentimento que os estrangeiros têm tanta dificultade para entender. E o torna comunicativo…

  2. Fernanda Oliveto disse:

    Lindo post. Perdi meus pais há pouco tempo (2 e 5 meses), de câncer de pulmão, e às vezes sinto esta saudade boa. Ela tende a ser,com o tempo, mais generosa, acredito. Por enquanto ainda é uma saudade muito triste e doída. Queria perguntar-lhe de quem é a autoria do poema. Grande abraço, Fernanda

    • Olá, Fernanda
      O poema é do Magro mesmo. Lindo, né?
      Sinto que a saudade vai ficando mais matizada por esses tons que trazem o sorriso ao rosto. Depende um bocado da gente levar pra esse lado e, sobretudo, não nos apegarmos a ela, seja triste ou alegre, percebendo e dando o tempo necessário, não mais nem menos. E com a certeza de que a falta será sempre sentida.
      É dureza, mas é momento de possibilidade de aprendizado intenso.
      Força aí!
      bjbj
      Mônica

  3. Sonia Ferreira disse:

    Jamais esqueceremos todos os momentos com nosso querido Magro…sua alegria na vida e na Musica está eternizado em nossos coraçoes!

  4. Lindo, Mônica! E lindo também no que você está transformando esta saudade que, com certeza, é de todos nós. O poema é um encanto, como o amor de vocês. Forte abraço.

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